Entre a Filosofia e a Teologia: “Conhece-te a ti mesmo”

   
​Conhece a ti mesmo


“E temos instrução para não procurar a divindade afastada de nós, pois a temos muito perto; na verdade, de dentro – mais dentro de nós do que nós mesmos estamos dentro de nós.”

    Giordano Bruno (1548-1600), Cene delle ceneri.
Quem é você? Essa é a pergunta que, em todos os tempos, se coloca de modo decisiva na existência humana; é a pergunta que atravessa a rede de opiniões, ideias sociais e ideologias, pois põe em xeque nada menos que a própria substância humana. Isso, porque, “quem é você”, tem a ver com a essência do ser. Não por acaso Shakespeare ser um cara tão indeciso — “ser ou não ser, eis a questão”.

Essa é a pergunta que desmascara o intelectual desprezível, pois o faz lidar com o embaraço de sua própria consciência. Essa pergunta está impertubavelmente relacionada com a frase “conhece a ti mesmo”, cravada no templo de Apolo em Delfos, examinada por Sócrates como a busca por verdades pré-existentes, fixadas na consciência humana.

Conhecer a si mesmo é a porta de entrada para entender a mistura humana entre o eterno e o temporal, entre o princípio da existência e além dela. Não há método para essa aventura. A busca por um método pressupõe um resultado e um ponto de chegada; presume também uma autoridade, um professor, um guru, um sistema, e nada disso nos garante alguma coisa. A busca por métodos cega a consciência do sujeito de querer entender a si mesmo, pois se canaliza no desejo de segurança, de certeza, gerando uma cisão entre a pessoa e sua experiência real.

Por um lado, este é um processo que nos faz reconhecer em nós mesmos toda a humanidade, e por outro, a própria face de Deus; é entender, como John Done, que nenhum homem é uma ilha, e internalizar a convicção de Kierkegaard de que somos uma consciência individual, única e insubjugável; é abrir a janela para compreender nossas limitações, deficiências e fragilidades, ao mesmo tempo em que percebemos no íntimo de nosso ser, pontos universais da realidade sobre o que seja o Belo, o Justo e o Verdadeiro. Como disse Eric Voegelim: “O homem, em seu conhecimento de si mesmo, não conhece a si mesmo apenas como um existente imanente ao mundo, mas também como um existente em abertura para a realidade transcendental”.

É evidente que isso é um processo de autoconhecimento, e por certo, uma viagem para as determinações mais sombrias do ser. Não é uma caminhada ao encontro da felicidade — digo, essa felicidade vendida pelo mercado de autoajuda —, não, apenas os que carregam o desespero da alma conseguem encarar os demônios da condição humana. Pra isso, se exige coragem. Não é coisa para iniciantes.

O apóstolo Paulo, ao falar de uma luta contra seres espirituais (Ef 6.12), deixa também manifesto que há uma guerra bem mais agressiva no íntimo de cada homem. A guerra contra si mesmo: “mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente… Miserável homem que sou” (Rm 7.23-24). O que Paulo descreve é um movimento violento da alma, pois exige consciência entre o que é espiritual e carnal. Somos esmagados por essas duas realidades. Não por acaso, Platão diz que: “a vitória sobre si mesmo é de todas as vitórias a primeira e a mais gloriosa”.

Estou seguro de que essa é a trilha da qual os mais valentes atravessam para conhecer a si mesmos. Uma via que a cada dia que passa menos as pessoas decidem trilhar. Existe uma decadência ontológica da humanidade no sentido mais essencial: a degradação do ser para o ter. Guy Debord, em A sociedade do espetáculo, percebe que na fase atual entramos em um “deslizamento generalizado do ter para o parecer”. O “ter” já se tornou tão descartável que o que se extrai dele é apenas seu prestígio imediato, sua incessante exibição da racionalidade técnica.

A humanidade inicia o século 21 assim, fazendo da verdade um espetáculo da negação visível da própria vida. Quem é você? Qualquer resposta autêntica parece ter entrado em extinção.

©2016 Lindiberg de Oliveira​

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